sexta-feira, 12 de junho de 2009

ENSAIOS: Espaço aberto, publique aqui o seu

TEATRO DOS VAMPIROS
Por Marilda Oliveira
Precisamos repensar o mundo com urgência. Reensaiar o nosso papel no espetáculo que se desenrola.
O que esperam os filhos, os netos, os descendentes desta geração e a do futuro próximo? O que teremos a fazer quando a esperança, a última que morre, estiver sepultada ?
Em eterna e intensa evolução, a humanidade parece caminhar para uma esquizofrenia coletiva ou para sua própria autodestruição. Ao tempo em que as avançadas tecnologias nos proporcionam prazeres, comodidades e a satisfação de alguns desejos, a redução de distâncias, a diluição de fronteiras territoriais, espaciais e temporais, na outra ponta, o aumento da violência, da criminalidade, da marginalidade e da exclusão social, nos assusta e nos cerca, às vezes, causando-nos verdadeiro torpor. Também aumenta a nossa covardia diante do mundo.
Relembrando debates, palavras e ensinamentos do sociólogo Gey Espinheira, tão prematuramente silenciado, incansáveis eram suas observações, análises e estudos sobre a violência e a sociabilidade, notadamente a da juventude, “recusando-se mesmo a associar o aumento da criminalidade à pobreza”, donde se entendia que não é possível creditar aos pobres a crescente violência que avança a passos largos pelo cotidiano da sociedade baiana, bem como se alastra por quase todas as regiões do país.
Não se creditem aos pobres a miséria da humanidade, mas à exclusão social perpetrada por uma classe de seres humanos sobre outra classe de seres humanos, reeditando Marx, Che, Luther King, Gandhi, Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Bob Marley e outros tantos que pensaram, lutaram ou apenas cantaram o ideal da paz, dos direitos humanos ou da solidariedade. Os imortais em essência.
Uma simples leitura de jornais ou uma visita diária a programas televisivos pode, instantaneamente, funcionar como um dispositivo imunodepressor. Quedamo-nos anestesiados pelas imagens, notícias, cenas, fatos e fotos. De outra forma, tal incursão pode acender o “led” do nosso quase esquecido senso de humanidade, da nossa capacidade de revolta, indignação e piedade. E, assim, nos tornamos esquizofrênicos.
Fácil é atribuir a culpa aos governos de “esquerda” – por sua conhecida e notória incompetência em gerir a administração pública depois de tanto tempo esperando ocupar o tão almejado poder, bem como fácil, é apontar para as práticas neoliberais tão bem elaboradas e perpetradas pelas mentes privilegiadas da nossa “direita”, a nossa velha burguesia. No entanto, estamos todos, em silente concerto, aqui e ali contribuindo para a disseminação da pobreza, da miséria, da antidignidade humana. Alguns em seus recônditos anseios de distanciar-se delas, sem que elas precisem deixar de existir. Outros deliberadamente alimentando-as e outros, utilizando a estratégia de eliminar a pobreza, eliminando os pobres.
Como cultivar esperanças num país em que a todo tempo uma elite se envaidece de sua riqueza, parecendo ignorar que são os alvos preferenciais da violência perpetrada por pessoas educadas na marginalidade e cooptadas pela criminalidade?
Como ignorar que para se manter no poder, essa seleta parte da sociedade delibera solenemente nos palácios e nos planaltos que a grande parte da população terá que permanecer na planície ou ‘dependurados’ nos morros ? Como compreender que essa mesma elite, apesar de pagar impostos ao Estado, para que este lhe devolva os custos em serviços, dele se locupletam para pagar à iniciativa privada por serviços básicos revestidos de qualidade ? Não seria mais lógico se a própria elite que reclama tanto dos altos impostos que pagam, exigisse, fizesse ou determinasse, com o poder da tinta de suas canetas e dos cargos e lugares que ocupam nos diversos poderes, que a saúde, a educação, a segurança e os demais serviços públicos fossem efetivamente de boa qualidade para todos para que não tivessem que pagar outra vez por tudo isso? No entanto, preferem pagar muito caro, por uma boa escola para seus filhos, por um bom atendimento médico pelos planos de saúde, por um transporte particular, eficiente e seguro que os obriga a enfrentar os enervantes congestionamentos. Tudo para se distinguirem dos demais que não podem ter e não podem pagar, e para os quais os serviços públicos de má qualidade, permeados pelos desvios e corrupção, serão destinados.
Como pagar tão caro se não for espoliando o ‘erário’ de todos, usando de estratagemas para que o seu ‘status’ seja sustentado pelos demais? Como poderão pensar em distribuição de riqueza e em políticas públicas? Se assim o fizerem, a gigantesca e anônima massa despossuída, que oportuniza a poucos viver como privilegiados, então, perderia a finalidade. Aliás, quem limparia seus esgotos e suas cozinhas? E quem engraxaria os seus sapatos? E quem seriam os seus caseiros, copeiros, jardineiros, empregadas domésticas? Quem manteria sua posição de autoridade e suas garantias de imunidade através do voto ? E, nesta sociedade multirracial, pluriétnica, onde ficariam os negros? E os índios?
Não tem lugar para todos no STF. Nem nas universidades federais. Muito menos nas faculdades de Direito ou de Medicina. E nem no Congresso. E nem nas Assembléias. Nem nas Câmaras de Vereadores. E nem nas emissoras de TV. Em nenhum local de grande visibilidade. Não há cotas para todos. E, ainda temos os “Big Brothers”, ia esquecendo...
Como entender que ao invés de termos a igualdade de acesso a todos os serviços indispensáveis à sobrevivência, os direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição cidadã, prefere-se separar os que podem dos que não podem pagar, os que podem dos que não podem ter, os que podem e os que não podem ser ?
Como cultivar as expectativas de uma vida mais confortável no plano da materialidade, se teremos que trancar nossas portas e janelas, instalar câmeras e alarmes, além das grades, e aprisionar nossos corações pelo medo a cada vez que sairmos de casa, a cada vez que retornarmos a ela, a cada ausência dos filhos, irmãos, pais, mães, tios, primos, esposas, maridos, avós?
“Esse é o nosso mundo. O que é demais nunca é o bastante e a primeira vez é sempre a última chance. Ninguém vê onde chegamos. Os assassinos estão livres. Nós não estamos...”
De que valem os dólares na conta em paraísos fiscais e as viagens à Europa, se os países de primeiro mundo, a despeito da globalização, aprofundam suas políticas de eugenia e de xenofobia, de fiscalização de suas fronteiras, e não vêem com bons olhos os turistas ou imigrantes brasileiros?
O que adianta o Audi na garagem, se no cotidiano estamos rodeados por uma emergente miserabilidade irresignada, com seus atores insatisfeitos com os “lugares sociais” que lhe são destinados, impostos e determinados por essa mesma elite, e que em sua irresignação vez por hora, avançam sobre os filhos ou os pais dos afortunados e lhes ceifam as vidas em troca de dinheiro para alimentar o vício, e movimentar o tráfico, e reproduzir os guetos e multiplicar os candidatos ao presídio ou a morte antecipada?
Temos degenerados de todas as espécies no mundo. E para tanto existe também uma paridade. Se existe uma elite perversa em toda sociedade, há também o “underground” .
Ao lembrar das palavras do inesquecível sociólogo, era impossível não concordar que “é muito difícil suportar a existência de cara limpa”, ditas assim, no contexto de um mundo armado, em eterna luta entre classes abastadas e desprovidas. E, para isso, as válvulas de escape estão ao alcance de todos. Há os que bebem, os que fumam, os que se drogam de variadas maneiras. Bebida, cigarro, vícios ou taras, maconha, crack ou cocaína, as drogas puras e as temperadas, as que ensejam “overdoses”, sem esquecer as brigas entre torcidas organizadas e ensandecidas que não percebem a falta de sentido em suas rivalidades enquanto os seus ídolos trocam de camisa por ‘qualquer muito dinheiro’, e o seu time nunca foi o mesmo.
O mesmo de tudo isso é o ressurgimento das turbas, das hordas, das massas atordoadas por um mundo sem grandes perspectivas para os pobres de todo tipo: os desvalidos, os deficientes, os desdentados, os idosos, os alienados, os apolíticos, os descamisados, os sem-tetos, os sem ilusão.
Por mais lugar comum que seja repetir, ainda é o velho problema da corrupção um dos nossos grandes males. Temos uma elite corrompida e imbuída da vontade de corromper e também uma classe despossuída que se corrompe pelo mínimo dos benefícios que puder obter. Dos legisladores em causa própria aos moderados, resignados, conformados, cada um fazendo a sua parte.
“E você ainda acredita que é doutor, padre ou policial, que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social”*.
O que nos impede de desfrutar os prazeres da existência digna, senão a nossa própria cegueira e estupidez ?
É válido sim, poder ter, poder ser e ter poder. A dignidade está no poder ver e preservar as paisagens naturais, no respeito ao meio ambiente e ao próximo como ser humano, em gerar filhos belos e bem cuidados, em sermos bem sucedidos, em reunir a família, em ter amigos, em entrelaçar nossos corpos com amor e sexo seguro, em nos embalar na suavidade da música falando ao sentimento e a alma, em degustar as iguarias que agradam o nosso paladar, em respirar ar puro, no prazer de saber ler e de poder ler um bom livro, em se enlevar diante da beleza de um rosto que não carrega marcas de sofrimento, em saber que o mar aberto não está poluído, e que o rio segue sua existência límpido e na inocência e fragilidade de uma vida recém-saída do ventre de uma mulher.
No entanto, vivemos como barcos sem rumo, vampiros de nós mesmos, espectadores da mediocridade, vítimas da impotência, enquanto, há muito mais beleza e poesia no mundo do que toda a miséria que o ser humano seja capaz de produzir. Bastaria que não desistíssimos de insistir em fazer com que a beleza e a poesia prevaleçam sobre a miséria e que teimássemos em acreditar que isso é possível.
Tarefa árdua é apenas entender porque os seres humanos em sua diversidade, pluralidade, potencial criativo, inteligência e capacidade pode ensejar as cenas mais cruéis e os gestos mais chocantes.
“A riqueza que nós temos, ninguém consegue perceber. E de pensar nisso tudo. Eu, homem feito, tive medo e não consegui dormir...”.**
Somos tão capazes de aproximar e afastar, fazer sorrir e fazer chorar, abrigar e excluir, fazer viver e fazer morrer de um a outro momento, a cada segundo, a cada instante. Podemos nos fazer mesquinhos e grandiosos, egoístas e solidários, esnobes ou comedidos, corruptos ou retos de caráter, magnânimos ou perversos, diante de todas as possibilidades que o mundo tem a nos oferecer.
Há os que essa dinâmica foi projetada e ainda é a manifestação da onipotência e onisciência de um único e todo poderoso Criador. Não há como discordar de que o Universo sempre esteve em ordem, nós é que criamos o caos.
__________________________________________________________
Marilda Oliveira Araujo é Servidora Municipal lotada na Secretaria Municipal de Saúde, Graduada em História pela UCSal, possui curso de Especialização em História pela UEFS, e atualmente cursa o 6.º semestre do curso de Direito da Faculdade Dois de Julho.
* Trecho da letra da música Ouro de Tolo - Raul Seixas
** Trechos da letra da música Teatro dos Vampiros – Renato Russo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário